(quadro de Vermeer - Moça com brinco de pérola)
Inventar uma história sempre foi difícil para mim. Só sei falar sobre a vida, de preferência sobre a própria. Quando nossa vida é plena de eventos, a realidade resulta melhor que a ficção. Poderia escrever sem parar, até morrer. No entanto é mais prudente esvaziar essa caixa mental vez ou outra, para que não transborde.
Desconfio que se uma pessoa olhar durante muto tempo para alguém, vai captar e até mesmo absorver um pouco de sua alma e personalidade.
A experiência que tive sábado quero descrever o melhor que puder. Num banco de uma lanchonete em frente à praia, em Santos (cidade onde nasci e vivi por 23 anos), o que pude observar não prometia deixar rastros...mas deixou. E o pior, rastros que agora me perturbam, machucam um pouco o coração, como mordidas de uma boca sem dentes.
Encontrei por acaso(?) meu alter ego sentada com o namorado, tomando um lanche que já parecia terminado. Sentada próximo a eles, percebi que havia naquela mulher de aproximados 35 anos, um rosto agradável, mais para bonito que feio, olhos claros porém encovados e sombrios, pele clara, cabelo escuro de corte médio, boca característica de pessoas seguras de si e levemente sarcásticas (muito levemente). Era uma boca agradável, mas feita para desconfiar de todos, sem deixar de expressar simpatia pelo interlocutor. Seu namorado, de quem só avistei o rosto num relance, quando se levantaram para ir embora, ficou de costas para mim o tempo inteiro e percebi que devia ter, pelo porte e uma calva aparecendo no cocuruto, uns 43 anos aproximados. Os dois estavam num diálogo, eu diria, bem equilibrado. Ele falava sem mover a cabeça, olhando sem cessar para ela. Mesmo estando de costas percebe-se esse tipo de coisa. Ela, por sua vez, falava tranquilamente, num equilíbrio perfeito. Não desviava o olhar para os arredores . O que mais me deixou impressionada e perplexa foi a expressão do rosto dessa moça. Sempre atenta ao que o namorado falava, mas a boca....ah! a boca denotava um auto-controle sobre toda e qualquer emoção que porventura estivesse sentindo.
No momento em que percebi isso, aí sim, não perdi um segundo sequer da cena. Ela era o que eu sempre gostaria de ter sido na minha juventude. Queria ter tido aquela boca, aqueles olhos azuis (que se guardavam de refletir emoções), a tranquilidade e gentileza com que acolhia tudo o que o rapaz dizia, (isso é essencial) sem parecer envolvida no assunto a ponto de se perturbar ou pegar para si os problemas ou alegrias do outro.
Em instante algum ela se traiu. A boca (ah, se eu soubesse desenhá-la) estava coberta por um batom rosa alaranjado pálido, era de tamanho médio e com o lábio superior levemente arqueado nas extremidades, mas muito levemente. Era uma boca bonita. Passava auto-confiança e segurança. Pronta para enfrentar o que houvesse. Tudo o que eu não era.
Quando se levantou para ir embora, senti que um pouco de mim foi junto com ela. O corpo era tipico das brasileiras cadeirudas e de coxas grossas, embora da cintura para cima tivesse um tórax delicado.
Agora me resta pedir aos céus que tire essa imagem da minha frente. Não tenho o direito de invejar ninguém, até porque sou gratíssima pela vida que tenho hoje. Mas confesso que se pudesse voltar atrás, se pudesse ter novamente 25 ou 30 anos, queria esse ar de poder e auto-controle que essa moça me passou.
Desejo de coração que ela possa viver o que eu não pude. Que ela possa se manifestar como eu não consegui. Que seja abençoada!!!
Nenhum comentário:
Postar um comentário