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sábado, 27 de agosto de 2022

primavera precoce em mim...

Até fui olhar quando começa a primavera. Porque já sinto hoje os eflúvios, aquele ar com cheiro de primavera e que me invade a alma. Todos os anos é assim. Sinto essa estação do ano mais do que as outras três. Talvez porque tenha nacido dentro dela e os elementos comecem a me influenciar.... a madeira, meu elemento na medicina chinesa, vem com força para me curar, assim como a seiva dos caules e das flores, os cheiros ficam mais intensos...

Quando Vier a Primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

(Poemas Inconjuntos, heterónimo de Fernando Pessoa)

                                                        (imagem da internet)
                                     (pilriteiros: flor do romance de Marcel Proust)



sexta-feira, 5 de agosto de 2022

AS FENDAS

 


(quadro pintado por minha mãe)


Ontem ouvi um senhor na TV, sobrevivente do holocausto, falar sobre suas lembranças de infância, e o estranho é que ele não tinha lembrança de seu tempo nos campos de concentração. Foi salvo aos 5 anos de idade por uma mulher (não me lembro agora de seu nome), mas tem nítida lembrança de um fato que ocorreu pouco tempo depois de ter sido salvo. A família tinha um veículo da marca Ford, daqueles bem "quadradinhos" (expressão dele). Um dia, passeando com os pais pelas ruas de Amsterdã, levava uma moedinha na mão que acabou escorregando por uma fenda, entre o painel e o motor. Ele ficou muito triste ao perder a moedinha holandesa. A Holanda estava sob o domínio das tropas alemãs, que saqueavam as casas dos judeus, levando tudo de valor, inclusive os carros. Eis que o fordinho foi-se e nunca mais recuperaram. Pois bem: Esse senhor, a partir daquele dia (tinha 5 anos), até uma idade avançada na juventude, sofreu calado e sentiu-se culpado pelo desaparecimento do carro da familia, pois achava que isso tinha a ver com o fato de ele ter perdido a moedinha dentro do veículo e de alguma forma despertar a curiosidade dos soldados alemães.

Eu sinto desconforto ao lembrar-me das fendas, e para falar a verdade sinto até um certo cheiro de bueiro, escoadouro, embora não me venha à lembrança nada que eu tenha deixado escorregar numa fenda. Mas tenho quase certeza de que isso aconteceu alguma vez, embora a memória me fuja no momento.